Nada de frigideira, forno, processados ou refinados. A culinária viva baseia-se no consumo de sementes germinadas, verduras, legumes e frutas cruas, além de fermentados e desidratados. Não entra nada de origem animal ou que tenha sido aquecido acima de 38 °C. Mas então o que sobra?, você deve estar se perguntando. Pois é. Na minha ingênua concepção, só restavam saladas e sucos. Até eu entrar na chamada “cruzinha” para ajudar no preparo de um almoço vivo, na Associação Terrapia, no Rio de Janeiro. Eu estava ansiosa, desconfiada – e curiosa.
Não por muito tempo, porém. Tudo ficou pronto logo e a mesa, lindamente posta, era um festival de cores e cheiros. Depois de agradecer pelo alimento, sentamos e começamos com o risoto de cenoura com nirá e a pizza de queijo de castanhas germinadas com massa de trigo também germinado. Minha desconfiança foi embora na primeira garfada. Como pode um risoto amornado (aquecido até uma temperatura que a mão suporte) ter tanto sabor? E uma pizza sem farinha nem leite ter uma textura tão agradável?
A filosofia nos grãos
A alimentação viva propõe estar em equilíbrio com a Terra e perceber o que somos, o que comemos e o que escolhemos ser. “É mais do que culinária, é uma questão de escolha pessoal”, diz Ana Branco, professora de design da PUC-RJ e criadora do Projeto Biochip, que estuda e ensina técnicas para utilização de alimentos vivos. Outro projeto referência no assunto é o Terrapia, centro de alimentação viva que também promove, por meio de cursos, uma reflexão sobre o modo de estar no planeta. Os adeptos da dieta viva acreditam que o ato de comer é uma forma de se posicionar no mundo: da escolha por alimentos locais e orgânicos ao descarte dos restos em composteiras, tudo é pensado para ter o menor impacto no ambiente e dar continuidade ao ciclo da matéria orgânica.
A proposta me pareceu tão interessante que resolvi passar uma semana experimentando viver só de “vivo”, como os adeptos chamam. Os sabores eu já sabia serem bons. O exercício mais difícil, como descobri depois, foi a socialização com amigos em bares e restaurantes. Nem sempre havia opções e passei a sair por aí com frutas e amêndoas na bolsa. Mas eu estava de tão bom humor que isso não chegou a me tirar do sério.
Introduzindo sabores
A disciplina foi outra questão importante. Precisei ir à feira três vezes em uma semana e me lembrar, dia e noite, de germinar os grãos do dia seguinte. Nessa semana, os brotos e sementes germinadas foram a base da minha alimentação. Sem eles, eu não teria a sensação de saciedade e, possivelmente, não teria ficado tão saudável. O processo de germinação em si não é difícil: de noite, você coloca as sementes na água. Enquanto nós dormimos, elas “acordam”. De manhã, antes de preparar o suco vivo, feito de maçã, folhas e grãos germinados e/ou brotos, joga-se a água dos germinados fora e eles ficam escorrendo por mais oito horas. Assim que surge um “narizinho”, eles germinaram e estão prontos para o consumo. O suco é uma das bases da alimentação viva e garante saúde e energia aos seus praticantes. E, cá pra nós, é uma ótima maneira de acabar com aquela prisão de ventre chata. Passei a tomar o suco todos os dias, mesmo depois da “semana viva”.
Experimentei lentilha, grão-de-bico, semente de girassol, feijão azuki e trigo germinados. A lentilha foi minha favorita. Fácil de germinar, seu gosto é ao mesmo tempo marcante e suave. Cabia nos meus sucos, saladas e pratos amornados. Quando eu estava sem inspiração, jogava um punhado delas no meio de uma salada de repolho roxo ralado, tomate, abacate e passas, com molho de azeite, shoyu, limão e óleo de gergelim (não tostado, claro) e pronto! Cores e sabores numa união deliciosa. Comi bastante durante toda a semana e não sofri com aquela sensação de “comi demais” em nenhum momento. Pelo contrário, podia fazer um banquete e me exercitar logo em seguida, de tanta vitalidade que o alimento vivo me trouxe. “O alimento vivo não é só preventivo, é também interventivo. Pode funcionar como uma cirurgia, fazendo verdadeiras operações dentro das células”, diz o médico Alberto Peribanez Gonzalez, autor do já clássico Lugar de Médico é na Cozinha (Ed. Alaúde). Cirurgião com doutorado em medicina na Ludwig Maximilians Universitaet Muenchen (Munique), na Alemanha, ele se dedica a buscar a comprovação científica e as explicações fisiológicas para o sucesso da alimentação viva. E que sucesso: Gonzalez conta de pessoas que usavam três antidepressivos diferentes e se curaram por meio da dieta viva, bem como de diabéticos que não precisam mais de aplicações de insulina. Não tenho depressão nem diabetes, mas senti na pele e no corpo as transformações prometidas pela alimentação viva: fiquei bem-humorada, com vigor, atenta, dormindo menos, me exercitando mais, sem gula, com alegria. E, de quebra, com a cozinha limpinha.
Sim, cozinha limpa. Afinal, tudo é muito simples de ser preparado. Nem é preciso usar detergentes – o planeta agradece, mais uma vez. Liquidificador, processador, facas, peneiras, uma loja de grãos e um bom mercado de frutas e legumes resolvem a vida dos que praticam a alimentação viva. Em alguns momentos, eu, cruzinheira de primeira viagem, perdi o ponto nas pastinhas e crackers. O processador de alimentos era muito rápido para mim e o que era para ser uma pasta mais consistente virava um creme-quase-sopa. Fui entendendo que, às vezes, um aperto de leve no botão era suficiente. Mas nada de muito grave. Afinal, como nada era cozido, eu não estava queimando nada… Só estava inventando novas maneiras de usar os ingredientes. E qual o problema de um hambúrguer de lentilha com trigo germinado e catchup de tomate seco virar uma pasta para se colocar na sobra do pão essênio?
Imitando comida
A educadora alimentar Juliana Malhardes, organizadora do site Culinária Viva, conta que mesmo quem não sabe cozinhar adora colocar o avental para o vivo. “É tudo uma grande brincadeira de imitar comida. Mesmo o prato mais elaborado é supersimples”, diz ela, que sete anos atrás, “mesmo para comer um hambúrguer no fast-food precisava colocar molho extra para a alface descer”. Ela sofria de crises alérgicas e muita dor de cabeça antes de iniciar, gradualmente, essa dieta. Juliana é a prova viva (com perdão do trocadilho) de que qualquer pessoa pode gostar do vivo e adotá-lo em seu dia a dia.
Doces e afeto
O vivo aposta em pratos que tragam à tona a memória afetiva dos alimentos. Muitas receitas lembram os pratos que saboreávamos com os avós aos domingos, como estrogonofe vivo ou um macarrão de legumes. No início, existe certo estranhamento, assumo. A textura não é exatamente a mesma. Mas o sabor pode ser até melhor que o original. “O alimento vivo é saboroso e reconstrói os afetos alimentares que trazemos da primeira infância. Tem hora que dá vontade de comer chocolate, então precisamos reproduzir os afetos da nossa cultura alimentar de maneira viva”, diz Juliana. Testei mil e uma maneiras de fazer milk-shake. Leite de castanha com morangos orgânicos ou com banana e cacau foram os preferidos. De sobremesa, o campeão de simplicidade e sabor foi o pudim de banana. Parecia inacreditável que bater frutas com canela no liquidificador, com o cuidado de inserir uma banana mais verde, tivesse aquela textura como resultado. Era um pudim aerado, delicioso.
Cynthia Brant, presidente da Associação Terrapia, depois de presenciar centenas de pessoas experimentando o vivo, afirma: “Esse tipo de alimentação é includente, dá para ir trazendo o vivo aos poucos para o seu dia a dia”. Alguns adotam o suco vivo pela manhã; outros, sementes germinadas nas saladas. É importante não apressar o processo, para que o novo praticante possa adaptar o paladar aos novos sabores, organizar novos hábitos e desenvolver habilidades na culinária viva. “Mesmo as pessoas que não têm o hábito de consumir alimentos crus no seu dia a dia irão se surpreender com a saciedade, os sabores e a beleza da comida viva. E aí cada refeição vira uma festa”, celebra Juliana. Eu não poderia concordar mais.