Responda rápido: você toma café da manhã de pé porque vive com pressa? Não consegue nem lembrar o que comeu no almoço de ontem? Se você disse sim, confesso: somos dois. Na maior parte das refeições, não consigo comer comendo, isto é, saboreando o alimento com gosto e atenção. Ou mergulho em pensamentos ou me disperso com conversas, música e televisão. Ao comer perco completamente a atenção no momento presente, que tanto saboreio no resto do dia.
E sou obrigada a compartilhar uma constatação: alimentar-se assim não é bom. Quem come sem perceber o que manda para o estômago acaba engolindo mais do que precisa, não mastiga direito os alimentos e tem mais dificuldade para digerir. Assim, mais pela saúde e paz de espírito, decidi procurar uma maneira de me alimentar com mais atenção. E fui procurar quem entende do assunto.
Não mude nada
Esse é o primeiro conselho de Alicia Negri, professora de orioki (a arte de comer meditando) do grupo de meditação Shambhala, de São Paulo. Espera lá, meditação? O que tem isso a ver com comer? Bom, meditar tem a ver com qualquer coisa. Meditação é um exercício de atenção plena, é estar consciente a cada bocado da vida (inclusive à mesa), sentindo o corpo e o ambiente ao redor, sem se perder em pensamentos.
No primeiro contato, Alicia, que é mestre-cuca em meditação, me pede para não modificar nenhum hábito. Sugere apenas que eu traga mais consciência e atenção para tudo o que fizer durante a refeição. Só isso. Quando ouço suas palavras, estremeço. Pressinto que meus dias de saborosa inconsciência diante da tevê estão contados.
Tento seguir sua receita já no dia seguinte, na hora do almoço. Ligo as antenas e percebo que, quando começo a pôr a mesa, todo o meu ser pede mais simetria nos arranjos de copos, pratos e talheres. O curioso é que o desejo de arrumar a mesa vem de dentro, não é fruto de uma imposição qualquer. Alicia tinha razão. Não é preciso fazer nada intencionalmente. A atenção, sozinha, inspira tudo o que precisa ser feito.
Ouça a comida
“Comer inclui todos os sentidos e não só o gosto”, afirma Alicia na segunda vez que nos falamos pelo telefone. Ela me diz que gosta de colocar alimentos crocantes aqui e ali na refeição para despertar os ouvidos para a audição interna. Comecei a prestar atenção no “crunch-crunch” da erva-doce da salada, no barulhinho da granola no café da manhã, no croque da primeira mordida no pão fresquinho.
Quase por encanto, ao observar minha audição, os outros sentidos também despertam. Uma coisa puxa outra. Percebi, por exemplo, que gosto muito mais do cheiro do café que do café, do cheiro da pipoca que da pipoca. Notei também que preciso ver muitas cores nos alimentos porque, do contrário, sinto que não estou me nutrindo de algo fundamental. E é exatamente das cores, me diz Alicia. “Alimentamos-nos delas, tanto quando da comida”, afirma. A variedade é um estímulo a mais para se manter a atenção desperta. A rotina, um convite ao entorpecimento. Se for difícil ter todas as cores e sabores numa refeição, é possível aprender a desfrutar daquelas que estão presentes naquele momento.
Comendo impressões
O mestre armênio Georges Gurdjieff (1866-1949) dizia que nos nutrimos de três alimentos principais: comida, ar e impressões. Isso mesmo: impressões, aquilo que nos chega por meio dos sentidos. Ele também afirmava que podemos ficar um tempo sem comida e alguns minutos sem ar, mas nem um único segundo sem impressões. Elas estão constantemente nos alimentando. Isto é, segundo Gurdjieff, ao dar sua garfada de arroz com feijão diante da tevê vendo as cenas da guerra do Iraque, você engole junto todas as impressões – e emoções negativas – que você associa à guerra do Iraque. Notícias, portanto, só antes do jantar ou às 10 da noite, depois da digestão. Ou, melhor ainda, no dia seguinte.
Outra modificação fundamental: com atenção, a gente senta direitinho, com postura correta, mesmo se não houver ninguém olhando (você já deve estar se arrumando na cadeira). Percebo encantada que a elegância chega junto com a atenção, é seu efeito colateral principal. E ninguém precisa mandar ou ensinar. Estética e porte são seus derivados naturais.
Depois de falar pela última vez com Alicia e ela me dizer que meditar é apenas prestar atenção plena a algo, me veio uma cena do filme Corrida do Ouro, com Carlitos. Faminto e ilhado pela neve no alto de uma montanha, ele é obrigado a comer a única coisa que restava: uma velha botina. Mas com que elegância Carlitos põe a mesa, arruma os pratos e come aquela botina, com que graça lambe seus cadarços, com que delicadeza corta sua sola em pedacinhos… Pensando bem, sim, é possível comer meditando com misto quente.