Pessoas conscientes com a alimentação levam, sim, marmita no trabalho
Foto:Alex Silva
Não se sabe ao certo quando esse costume surgiu, mas o ato de preparar em casa a refeição para levar para o trabalho já se tornou tão arraigado na nossa cultura que a marmita virou quase um patrimônio nacional, tal qual o prato feito. Dos camponeses aos executivos de empresas, a receita caseira fundada em ingredientes simples, baratos, mas ao mesmo tempo frescos, saborosos e de fácil preparação, se tornou um emblema dessa relação trabalhador x comida. Relação que começou há tempos, vale dizer: da vinda dos escravos à chegada ao país dos imigrantes europeus que trataram de povoar nossas lavouras em busca de trabalho. Foi o hábito da marmita, inclusive, que caracterizou os trabalhadores do campo como boias-frias, acostumados a sair de casa ainda sem o sol na cabeça e com a “boia” carregada no ombro, que já estava fria na hora de saboreá-la.
Novo status
Hoje, com as pessoas mais interessadas em culinária e mais dedicadas à prática do fogão, levar marmita ganhou outro status. Se antes muitos tinham vergonha de levar comida pronta ao trabalho, essa onda de se preocupar mais com o que se leva à boca permitiu às pessoas mais conscientes com a alimentação serem vistas com outros olhos pelos seus pares. E que se sintam mais encorajadas a preparar – e comer – suas próprias receitas. Outro fator que ajudou na revitalização da marmita, ou pelo menos que ela fosse encarada sem preconceito, foi a releitura que alguns chefs brasileiros fizeram desse antigo hábito.
Como é o caso de Ana Luiza Trajano, do restaurante Brasil a Gosto, em São Paulo, especializado na diversidade da gastronomia típica do nosso país. Entre andanças e pesquisas sobre a identidade brasileira no prato, colhendo ingredientes e histórias, Ana Luiza achou por bem homenagear na sua cozinha os trabalhadores rurais do interior do estado de São Paulo, onde nasceu. “Sou de Franca, perto de Ribeirão Preto, e ali via, desde menina, os boiasfrias que trabalhavam nos canaviais da região. E resolvi colocar no cardápio do restaurante as ‘boias-quentes’, pratos triviais da nossa culinária servidos como a marmita desses trabalhadores, com a única diferença de serem servidas quentinhas”, diz ela, que mantém as boias há cinco anos no menu. Entre as receitas preparadas pela chef estão o picadinho, o bife acebolado, a moqueca, a carne-seca, entre tantas variações da comida do dia a dia. “Sempre acabo me voltando para o trivial, o simples”.
Tradição de gerações
O ensinamento de levar a própria comida no trabalho também está ai presente na cultura japonesa. Lá, a marmita é chamada de bento (ou bentô, como pede a pronúncia em português). Desde que são pequenas, as crianças se habituam a levar para a escola a refeição preparada pela mãe, que a decora com todo o zelo, para incentivar seus filhos a comerem tudo. A comida, feita com o carinho materno, tem tanto apelo aos olhos quanto ao paladar. Preparar a comida em casa exige uma dedicação e um capricho todo especial. As marmitas japonesas são muito coloridas, detalhadas, minuciosas: parecem até obras de arte, tamanho o apuro com que são feitas. A explicação é que os japoneses olham para a marmita com muito respeito e também com certo pesar de desfazer o trabalho que foi feito com tanto apreço. Dessa forma, comem com mais cuidado, observando com prazer as cores, os sabores. “E, assim, comem mais devagar, saciando a fome aos poucos, sem precisar devorar um monte de coisa para se sentirem satisfeitos, como acontece aqui no Brasil”, explica a professora de engenharia de alimentos Hélia Harumi Sato.