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O milagre do pão

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Todo cozinheiro hesitante guarda, com carinho e receio, uma lista de receitas especiais que gostaria de tentar preparar, mas que acredita ainda não ser capaz de realizar plenamente. Para mim, são os suflês, as coxinhas e, até bem pouco tempo atrás, os pães. Mas esses eu resolvi que era hora de encarar.

Eles têm fama de trabalhosos, demorados e temperamentais – qualquer coisinha fora da ordem e eles se recusam a crescer, e lá se vai uma boa quantidade de ingredientes e tempo desperdiçados. Não é trabalho para qualquer dia e hora. Mas descobri que o prazer de sentir o aroma de pãoassando se espalhar pela casa e saboreá-lo quentinho, saindo do forno, sabendo que está livre de qualquer química, vale a dedicação.

Os especialistas concordam: fazer pão dá mesmo um trabalhão. “Não é difícil, mas é demorado, tem de ter paciência”, diz Julice Vaz, chef especialista em panificação e proprietária da loja de pães artesanais Julice, em São Paulo. Para Izabel Pereira, que prepara pães artesanais na sua Marie-Madeleine Boutique Gourmet, também em São Paulo, não é necessário ter medo do pãocaseiro. “Basta respeitar as técnicas, ter muita atenção e uma boa receita para que o resultado seja delicioso.”

Dito isso, peguei algumas receitas de pão integral de fontes que eu já conhecia, daquelas com coordenadas que quase sempre dão certo, e botei a mão na massa. Antes, pesquisei um pouco sobre sua história.

O homem come pão há mais de 10 mil anos. Segundo historiadores, ele teria sido um dos primeiros alimentos preparados no fogo, mas era achatado e duro. Apenas no Egito, milhares de anos depois, é que foi descoberto o processo de fermentação, e ele cresceu e se tornou mais macio. Os gregos levaram a descoberta egípcia para a Europa e aperfeiçoaram a técnica, já os romanos espalharam o costume para o restante do continente.

Ao longo dessa história, ele se tornou item tão importante na alimentação que virou metáfora para comida na mesa e fartura, e foi alçado a símbolo de diversas religiões. Está presente nos livros sagrados e se destaca em festas e celebrações religiosas. É o alimento que se multiplica para sustentar a todos, é o corpo de Cristo na comunhão e o presente de Deus aos judeus. Um alimento essencial.

Trabalho e descanso

Para fazer alimento tão primordial em casa, é importante começar usando bons ingredientes. Julice Vaz aconselha dar preferência às farinhas de trigo especiais para o preparo de pães. Comecei pela receita mais simples, uma que levava apenas farinha branca, farinha integral, água, sal, azeite e fermento seco para pães. Misturei os ingredientes respeitando à risca as instruções. Feito isso, espalhei um pouco de farinha sobre uma superfície e sovei. Um pouco sem saber exatamente como fazer, fui trabalhando a massa à mão, esticando e dobrando. A receita mandava seguir nessa toada por dez minutos, mas no quinto já faltava força.

Parei no sexto e torci para ser suficiente. Mas é perfeitamente aceitável sovar a massa com a ajuda de uma boa batedeira, tornando o processo muito menos cansativo do que era para nossas bisavós. Essa mãozinha tecnológica pode inclusive melhorar o resultado. “Não dá para comparar a força de uma máquina com a força de uma pessoa”, diz Julice. “O trabalho mecânico tem sempre a mesma força, então vai ter uma regularidade no trabalho. Na mão, cada hora vai com uma força e a gente fica cansada, ainda mais hoje que não temos mais costume de fazer isso.”

O próximo passo é deixar a massa descansar. Para Izabel, respeitar o tempo de fermentação é essencial. “O mais importante é ter paciência com a massa. Ela é exigente, precisa do seu tempinho sozinha”, diz. Mas o tempo de descanso da massa não é uma ciência exata e, dependendo do dia, pode ser diferente daquele indicado na receita. Aí é que complica.

Julice explica que a temperatura ambiente influencia a ação do fermento. “No frio, o fermento demora mais para agir. Ele é um ser vivo que se alimenta do açúcar da massa e, no frio, se alimenta mais devagar e o pão demora muito para crescer.” As temperaturas entre 28 e 32 graus são ideais para a fermentação. Em dias menos quentes, pode-se acelerar o processo esquentando a cozinha com um forno ligado ou deixando a massa dentro do forno desligado, mas com a luz interna acesa. Mas, de modo geral, a regra é ter paciência. Por isso, muitas receitas sugerem um tempo de descanso para massa com a ressalva “ou até que dobre de tamanho”.

Fui paciente, o dia estava frio, mas mesmo assim a massa cresceu. Tal qual acontece quando se coloca um bolo no forno, ver crescer uma massa preparada por você causa uma sensação única de espanto e satisfação. Levei-a ao forno e em pouco tempo o pão estava pronto. A casca ficou crocante, o interior, macio. O sabor do fermento, no entanto, predominou e tornou o pão um pouco enjoativo. Sucesso parcial.

Na segunda experiência, optei por uma receita com farinha de linhaça e fermento fresco. Para Izabel, esse fermento faz pães mais gostosos. “Ele dá mais sabor, mais crocância, além de maior durabilidade”, diz. Porém, ele é mais delicado e um descuido pode colocar a receita a perder.

O fermento fresco deve ser bem cuidado desde a compra. Ele precisa ser mantido refrigerado e não deve sofrer oscilações de temperatura. Por isso, passar no mercado em um dia quente e demorar para voltar para casa, deixando o fermento no carro, por exemplo, pode ser fatal. Julice afirma ainda que o principal erro das pessoas ao fazer pães é justamente o manuseio do fermento fresco ao iniciar a preparação. “Em geral, a receita manda colocar o fermento na água morna, mas as pessoas ultrapassam a temperatura ideal. Elas colocam água quente no fermento e matam ele. A água morna deve estar entre 20 e 24 graus”, explica. Ainda sem ter essa informação, coloquei a água quente demais no fermento e meu pão não cresceu como deveria. Não foi de todo perdido, o resultado ficou muito mais saboroso que o primeiro, porém menos macio.

Levain e brioches

É o fermento natural, no entanto, o favorito de todos. Ele faz pães mais saborosos, crocantes, saudáveis e que duram mais. Mas trata-se de um ser vivo exigente que pode não valer a pena para quem só quer assar uns pãezinhos de vez em quando.

O levain é cultivado a partir da mistura de água, farinha e um ingrediente com açúcar e acidez, como uma fruta. O de Izabel, por exemplo, foi feito a partir de maçã verde. Nessa mistura, os micro-organismos presentes no ar vão começar a agir. Para manter o fermento vivo, é preciso alimentá-lo constantemente com mais água e farinha. “O processo de fabricação é demorado, exige atenção e dedicação por dias, até que ele esteja pronto para ser usado. Por se tratar de um fermento vivo, que depende de vários fatores para se desenvolver, a probabilidade da experiência não dar certo é grande”, fala Izabel. “Se a utilização dele não é frequente, o trabalho acaba sendo pouco útil.”

Desisti da ideia de começar um levain e também de insistir em seguir os passos da velha guarda e, na terceira experiência – uma receita de brioche de Julice – usei minha batedeira. Mas ela, por ser das mais básicas, é inadequada para bater massas pesadas e quase pifou no processo. A massa acabou sendo trabalhada menos do que deveria, mas mesmo assim o resultado foi um pãodoce saboroso, que arrancou suspiros em casa e não me deixou com dores nos braços.

Poucos dias depois, já começava a pensar em qual pão faria a seguir. Era fato, o bichinho do padeiro tinha me picado. Com a batedeira certa, que consiga trabalhar as massas pesadas, comer pão fresco saído do forno vai virar rotina lá em casa.